Livro O Céu e o Inferno
Qual o destino do homem após a morte física? Quais as causas do temor da morte? Existem o Céu e o Inferno? A antiga crença nos anjos e demônios merece crédito? Como procede a Justiça Divina? Estas e outras questões correlatas são devidamente esclarecidas na primeira parte da obra ‘O Céu e o Inferno – ou A Justiça Divina Segundo o Espiritismo’, à luz da lógica e dos ensinamentos dos Espíritos. Na segunda parte, intitulada ‘Exemplos’, Kardec registra numerosas comunicações de Espíritos – classificados por categorias, tais como: felizes, sofredores, arrependidos, endurecidos, suicidas.
1ª parte – Capítulo VI – Doutrina das Penas Eternas
CAPÍTULO VI
DOUTRINA DAS PENAS ETERNAS
Origem da Doutrina das Penas Eternas
2. – A doutrina das penas eternas, como a do inferno material, teve sua razão de ser, enquanto esse temor podia ser um freio para os homens pouco avançados intelectual e moralmente. Assim como teriam ficado apenas pouco ou nada impressionados pela ideia de penas morais, não teriam ficado mais impressionados pela de penas temporais; nem mesmo teriam compreendido a justiça das penas graduais e proporcionais, porque não estavam aptos a apreender as nuances muitas vezes delicadas do bem e do mal, nem o valor relativo das circunstâncias atenuantes ou agravantes.
3. – Quanto mais próximos os homens estão do estado primitivo, mais são materiais; o senso moral é o que neles se desenvolve mais tardiamente. Por esta mesma razão, só podem fazer uma ideia muito imperfeita de Deus e de seus atributos, e uma ideia não menos vaga da vida futura. Identificam Deus à sua própria natureza; é para eles um soberano absoluto, tanto mais temível quanto invisível, como um monarca déspota que, oculto em seu palácio, nunca se mostra aos súditos. Ele é poderoso somente por sua força material, pois eles não compreendem o poder moral; veem-no apenas armado com o raio, ou no meio dos relâmpagos e das tempestades, semeando à sua passagem ruína e desolação, segundo o exemplo dos guerreiros invencíveis. Um Deus de brandura e de misericórdia não seria um Deus, mas um ser fraco que não poderia fazer-se obedecer. A vingança implacável, os castigos terríveis, eternos, não tinham nada contrário à ideia que eles faziam de Deus, nada que repugnasse à sua razão. Eles mesmos implacáveis em seus ressentimentos, cruéis com os inimigos, sem compaixão pelos vencidos, Deus, que lhes era superior, devia ser ainda mais terrível.
4. – À medida que o Espírito se desenvolveu, o véu material dissipou-se pouco a pouco, e os homens tornaram-se mais aptos a compreender as coisas espirituais; mas isso aconteceu apenas gradualmente. Quando Jesus veio, pôde anunciar um Deus clemente, falar de seu reino que não é deste mundo, e dizer aos homens: “Amai-vos uns aos outros, fazei o bem aos que vos odeiam;” ao passo que os antigos diziam: “Olho por olho, dente por dente.”
5. – No entanto, o Cristo não pôde revelar a seus contemporâneos todos os mistérios do futuro; ele mesmo disse: “Teria ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não as compreenderíeis; é por isso que vos falo por parábolas.” Sobre tudo o que se refere à moral, ou seja, os deveres de homem para homem, ele foi muito explícito, porque, tocando na corda sensível da vida material, ele sabia ser compreendido; sobre os outros pontos, ele se limita a semear, sob forma alegórica, os germes do que deverá ser desenvolvido mais tarde.
6. – Se Jesus ameaçou os culpados com o fogo eterno, ameaçou-os também de serem jogados na Geena; ora, o que era a Geena? Um lugar nos arredores de Jerusalém, um vale onde se jogavam as imundícies da cidade. Seria preciso então tomar também isso ao pé da letra? Era uma dessas figuras enérgicas com o auxílio das quais ele impressionava as massas. Ocorre o mesmo com o fogo eterno. Se seu pensamento não fosse esse, estaria em contradição consigo mesmo exaltando a clemência e a misericórdia de Deus, pois a clemência e a inexorabilidade são contrários que se anulam. Seria enganar-se estranhamente sobre o sentido das palavras de Jesus ver nelas a sanção do dogma das penas eternas, enquanto todo seu ensinamento proclama a brandura do Criador.
7. – Para homens que tinham apenas uma noção confusa da espiritualidade da alma, a ideia do fogo material não tinha nada de chocante, tanto menos que ela estava na crença vulgar tirada da crença no inferno dos pagãos, difundida quase universalmente. A eternidade da pena também não tinha nada que repugnasse a pessoas submetidas há séculos à legislação do terrível Jeová. No pensamento de Jesus, o fogo eterno podia então ser apenas uma figura; pouco lhe importava que essa figura fosse tomada ao pé da letra, se devia servir de freio; ele sabia bem que o tempo e o progresso deviam encarregar-se de fazer compreender seu sentido alegórico, sobretudo quando, segundo sua predição, o Espírito de Verdade viria esclarecer os homens sobre todas as coisas.
8. – Todas as religiões primitivas, de acordo com o caráter dos povos, tiveram deuses guerreiros que combatiam à frente dos exércitos. O Jeová dos hebreus fornecia-lhes mil meios de exterminarem os inimigos; recompensava-os pela vitória ou punia-os pela derrota. Segundo a ideia que se fazia de Deus, acreditava-se reverenciá-lo ou apaziguá-lo com o sangue dos animais ou dos homens: daí os sacrifícios sangrentos que desempenharam papel tão importante em todas as religiões antigas. Os judeus haviam abolido os sacrifícios humanos; os cristãos, apesar dos ensinamentos do Cristo, durante muito tempo acreditaram reverenciar o Criador entregando por milhares às chamas e às torturas aqueles que denominavam hereges; eram, sob outra forma, verdadeiros sacrifícios humanos, visto que eles o faziam para a maior glória de Deus, e com acompanhamento de cerimônias religiosas. Hoje mesmo, invocam o Deus dos exércitos antes do combate e glorificam-no depois da vitória, e isso frequentemente pelas causas mais injustas e mais anticristãs.
9. – Como o homem é lento para se desfazer de seus preconceitos, de seus hábitos, de suas ideias primeiras! Quarenta séculos nos separam de Moisés, e nossa geração cristã ainda vê traços dos antigos usos bárbaros consagrados, ou pelo menos aprovados pela religião atual! Foi preciso o poder da opinião dos não ortodoxos, daqueles que são vistos como hereges, para pôr
fim às fogueiras, e fazer compreender a verdadeira grandeza de Deus. Mas, no lugar das fogueiras, as perseguições materiais e morais ainda vigoram plenamente, tão enraizada está no homem a ideia de um Deus cruel. Alimentado por sentimentos que lhe são inculcados desde a infância, pode o homem se espantar de que o Deus que lhe apresentam como glorificado por atos bárbaros condene a torturas eternas, e veja sem compaixão os sofrimentos dos condenados?
11. – Só um ser infinito pode fazer algo infinito. O homem, sendo limitado em suas virtudes, em seus conhecimentos, em seu poder, em suas aptidões, em sua existência terrestre, pode produzir apenas coisas limitadas.
12. – A isso, responde-se que o pecador que se arrepende antes de morrer sente a misericórdia de Deus, e que então o maior culpado pode cair em graça.
13. – Deus é soberanamente justo. A soberana justiça não é a justiça mais inexorável, nem aquela que deixa toda falta impune; é aquela que tem em conta rigorosamente o bem e o mal, que recompensa um e pune o outro na proporção mais equitativa, e nunca se engana.
15. – A doutrina das penas eternas absolutas conduz portanto forçosamente à negação ou à diminuição de alguns atributos de Deus; ela é, por conseguinte, inconciliável com a perfeição infinita; de onde se chega a esta conclusão: Se Deus é perfeito, a condenação eterna não existe; se ela existe, Deus não é perfeito.
16. – Invoca-se ainda a favor do dogma da eternidade das penas o argumento seguinte:
17. – O último argumento a favor da eternidade das penas é este: “O temor de um castigo eterno é um freio; se for retirado, o homem, sem temer mais nada, entregar-se-á a todos os excessos.”
19. – É incontestável que a alma, atrasada intelectual e moralmente, como a dos povos bárbaros, não pode ter os mesmos elementos de bem aventurança, as mesmas aptidões para gozar dos esplendores do infinito, do que aquela cujas faculdades são todas amplamente desenvolvidas. Portanto, se as almas não progridem, não podem, nas condições mais favoráveis, gozar perpetuamente senão de uma bem-aventurança por assim dizer negativa. Logo, chega-se forçosamente, para estar de acordo com a rigorosa justiça, a esta consequência de que as almas mais avançadas são as mesmas que as que estavam atrasadas e que progrediram. Mas aqui tocamos na grande questão da pluralidade das existências, como único meio racional de resolver a dificuldade. Porém, faremos abstração dela, e consideraremos a alma numa única existência.
21. – O dogma da eternidade absoluta das penas é, portanto, inconciliável com o progresso da alma, visto que lhe oporia um obstáculo invencível. Esses dois princípios se anulam forçosamente um ao outro; se um existe, o outro não pode existir. Qual dos dois existe? A lei do progresso é patente: não é uma teoria, é um fato constatado pela experiência; é uma lei natural, lei divina, imprescritível; logo, visto que ela existe, e que não se pode conciliar com a outra, é que a outra não existe. Se o dogma da eternidade das penas fosse uma verdade, Santo Agostinho, São Paulo e muitos outros jamais teriam visto o céu se tivessem morrido antes do progresso que os levou à conversão.
23. – A crença é um ato do entendimento, é por isso que não pode ser imposta. Se, durante certo período da humanidade, o dogma da eternidade das penas pôde ser inofensivo, até mesmo saudável, chega um momento em que se torna perigoso. Com efeito, desde o instante em que o impondes como verdade absoluta, quando a razão o repele, resulta daí necessariamente uma destas duas coisas: ou o homem que quer crer cria uma crença mais racional, e então se separa de vós; ou então não crê em mais nada. É evidente que, para quem quer que seja que estudou a questão com sangue frio, em nossos dias, o dogma da eternidade das penas fez mais materialistas e ateus do que todos os filósofos.
24. – Dando a nova revelação ideias mais sãs da vida futura, e provando que se pode obter a salvação por suas próprias obras, ela deve encontrar uma oposição tanto mais viva quanto seca uma fonte mais importante de produtos. Assim é a cada vez que uma descoberta ou uma invenção vêm mudar os hábitos. Aqueles que vivem dos antigos procedimentos custosos defendem-nos e criticam os novos, mais econômicos. Acredita-se, por exemplo, que a imprensa, apesar dos serviços que devia prestar à humanidade, deve ter sido aclamada pela numerosa classe dos copistas? Claro que não; eles devem tê-la amaldiçoado. Foi assim com as máquinas, as estradas de ferro e cem outras coisas.